sábado, 22 de janeiro de 2011

Um pedaço de memória de presente

A família do meu pai nasceu sobre os pilares de um casal japonês que veio ao Brasil após a 2 Guerra Mundial com a metade de seus filhos nascidos em busca de um lugar melhor pra viver.
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Minha avó paterna morreu de malária quando eu ainda nem tinha nascido, é o que a minha mãe diz. A única imagem que tenho dela em minha mente é uma foto que fica no seu hotokesan (altar de culto construído aos antepassados após a sua morte). A foto mostra uma japonesa idosa com olhos brilhantes e um sorriso doce. Diziam que era baixinha como uma de minhas irmãs que herdou outros traços dela. No mais minha mãe fala somente sobre algumas brigas que teve com ela ao entrar numa família japonesa, e de como ela a maltratava, referindo-se a minha mãe como empregada nos chás em que oferecia às amigas, até que minha mãe aprendeu a falar japonês, Sozinha.
Duas imagens contraditórias.

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Meu avô, ou Ditian como chamavámos, morreu em 1998 de tuberculose. Eu tinha 8 anos. Ainda lembro da imagem de seu velório. Não havia tristeza em mim, só uma curiosidade de observar aquela cerimônia vista pela primeira vez em minha vida. Meu pai tinha voltado do Japão só pra pegar seus últimos suspiros, não era o que ele queria, mas foi o que aconteceu. Trouxeram as mesas do kaikan (sede da colônia japonesa) e puseram todas juntas no quintal. Arrumaram o Hotokesan dele com uma foto, um pote pra incenso, comida, bebida e flores. A colônia toda estava lá para ver ele. Alguns choraram, outros estavam tristes e conformados e dois primos meus riam na beira do caixão. Quando fui ver ele parecia simplismente estar dormindo, mas mesmo assim me dava medo.

Ele era meu avô e todas as lembranças que eu havia dele até ali eram de medo.

Ele havia participado da 2 Guerra Mundial, tinha algumas fotos e muitas histórias pra contar. Dizia que para sobreviver teve de comer a carne de alguns de seus melhores amigos, se esconder debaixo de outros corpos, entre tantos outros horrores pelo qual passou. Sentava-se sempre em sua cadeira de balanço do quintal e ficava lá por horas até anoitecer. Às vezes seu olhar se perdia no horizonte, eram tão doces quanto os da minha avó mas de repente se tornavam tão vazios, como se não estivesse ali.
Com o avanço da idade, tinha por volta de 80 quando morreu, seu estado de saúde foi piorando. Os olhares vazios foram preenchidos por gritos, que muitas vezes traziam nomes de amigos dos campos de batalha, ele os via sempre que se sentava naquela varanda. Quando passávamos perto e ele lá estava colocava as mãos nos olhos como binóculose aquilo me assustava tanto, pois todos diziam que estava velho e ficando louco. Hoje eu penso que estranho seria não enlouquecer algum dia depois de tanto horror absorvidos em sua retina e gravados na mente.

Não fui ao enterro. Estava dormindo e mesmo que tivessem me acordado pra mim não fazia diferença jogar um punhado de terra na pessoa de quem tanto tive medo, mas que era meu avô.
Sempre me senti culpada por não ter tido nenhum vínculo com aquele homem. Nenhum pesar em sua morte. Olhando as fotos vejo apenas um idoso alto e de olhos doces que sobreviveu, criou seus filhos e ainda teria amor de sobra aos netos. Amor esse que não senti. Ou achava não ter sentido até ganhar uma memória de presente.

Estávamos em mais uma tarde qualquer no sítio do meu tio, irmão da minha mãe, que sempre relembra algumas histórias do passado, rindo de todas as lembranças que ele possui da minha infância. Estava esperando mais uma daquelas histórias repetidas de como eu pesava, ou das brigas com meu irmão mais novo. Quando ele me deu um pedaço de memória que não guardei. Ele disse que quando eu era menor sentava no colo do meu avô na poltrona que ele adorava e conversava por horas. Ele falava japonês e até onde eu sei, sei algumas palavras em japonês, coisas soltas, não o idioma digno de uma conversa. Mas mesmo assim ousava sentar no colo dele e conversar. Quando ele pedia alguma coisa gritando e gesticulando, coisa que lembro por mim mesma, meu tio contou que eu era a única que entendia. "Tão pequena chegava perto do dele, ficava quieta prestando atenção e então ia buscar exatamente o que ele queria. Era a única que sabia o que ele queria, Tão esperta." Minha mãe não soube explicar o porque de eu ter perdido essa relação com ele, mas ficou encantada com a memória que nem ela havia guardado. Lembrou-se que ele me colocava em uma bacia de alumínio pra tomar banho com meus primos, e que estes mesmos primos, que eram os que por acaso riam dele na beira do caixão, cresceram e eram crianças violentas e sem respeito algum que batiam nele com cabo de vassoura. Talvez eu tivesse me afastado justamente aí, não tinha forças pra protegê-lo nem coragem de ficar lá e olhar tais cenas.
Há muito tempo guardo uma foto intrigante em meu caderno. Meu avô em sua poltrona comigo na perna esquerda e meu irmão mais novo no braço direito. Me intrigava o fato de eu não estar nenhum pouco assustada na foto, lá não havia medo. Agora com o pequeno pedaço de memória que ganhei consigo olhar pra foto e sorrir, feliz por ter sido uma neta de verdade ao meu admirável avô.