domingo, 29 de agosto de 2010

Um só mundo

Se conheceram quando ainda eram crianças.
Foi num dia chuvoso, ela se lembra bem. Estava com o rostinho grudado na janela da sala olhando pro quintal, vendo aquela chuva forte sobre o seu jardim e olhando de vez em quando a rua como quem esperasse um homem com um guarda-chuva cantarolando aparecer a qualquer momento pra animar tão entediante noite.
Sua casa ficava na intersecção de duas ruas fim de uma começo da outra. Morava num dos cantos da cidade, ou num dos cantos do fim do mundo como sua avó dizia. Estava quase dormindo encostada naquele vidro tão geladinho quando notou algo luminoso se aproximando devagar, esfregou os olhos para ver melhor e viu que era um carro, mas estava lento demais. Talvez o motorista esteja com medo da chuva ela pensou, mas antes que pudesse concluir o carro, depois de balançar como se estivesse engasgado, estancou bem na curva de sua casa. A chuva tinha diminuído um pouco e ela conseguiu ver um menino com o a cara grudada no vidro olhando pra ela com um ar curioso. Havia mais duas pessoas na frente que ela imaginava ser os pais, eles pareciam discutir com uma cara meio assustada. Talvez precisassem de ajuda. Ia chamar os pais, mas quando olhou pra trás seu pai a ergueu no colo pra ir pra cama. Ela espernoou berrando ao pai sobre o carro, ele a devolveu e deu uma olhada para a rua. Mandou a mulher trazer a capa de chuva e guarda-chuvas e foi ver se as pessoas ali precisavam de alguma ajuda.
Alguns minutos depois a família já estava toda dentro da casa. Vinham de um passeio quando a chuva mais os buracos da estrada fizeram com que água entrasse no escapamento. Os homens tentaram arrumar enquanto as mães papeavam e as crianças se encaravam, mas a chuva voltou a piorar e os donos da casa ofereceram hospedagem até tudo melhorar.
Eram famílias completamente diferentes uma humilde que morava no canto do fim do mundo e uma nobre que morava na casa mais bonita da cidade, que por ordem de contato máximo teriam apenas os raros cumprimentos triviais lançados pelos bons costumes. Naquela noite porém, ambas estavam encantadas, uma com a hospitalidade dos desconhecidos e a outra com a humildade e simpatia das visitas. Poderia ter sido só uma noite ruim e de estranhamentos, mas o som que os sorrisos das crianças faziam antes de dormir já mostrava as muitas risadas que ainda viriam.

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O tempo passou as visitas continuaram, os vizinhos estranhavam, e as risadas aumentaram, mas com elas também aprenderam a compartilhar a dor de como quando o pai de Lili morreu. Ela adorava ele mais que a mãe, não que a mãe fosse ruim mas é que o pai era de uma visão quixotesca e isso a encantava mais que tudo. Era ele quem levava ela ao sítio quando era criança, depois de um tempo ela passou a levar o novo amigo junto. Eles brincavam o dia inteiro, escolhendo pra cada dia uma profissão. Quando perguntavam o que queriam ser eles diziam tudo que fomos no mês passado e que seremos no mês que vem e caíam na risada. Era uma energia que não acabava nunca, iam de pianistas a cientistas, atrizes e cineastas a astronautas. Até que o pai de Lili morreu e ela perdeu um pouco do brilho que carregava quando rodopiava ao vento no jardim. Demorou um tempo pra se recuperar, mas em nenhum momento negou a companhia de Carlos. Às vezes passavam horas em silêncio olhando as estrelas como se estivessem esperando algo mais, ou até mesmo o jardim ou o nada. Queriam um sinal pra reviver as alegrias de antes.
Lili voltou a ser ela num dia de março e ninguém a não ser ela sabe o como e o porquê. Ainda tinha os mesmos sonhos e o mesmo companheiro para realizá-los. Mais crescidos aprenderam muito com a companhia do outro, ela lhe ensinou sobre jardinagem, e ele sobre insetos, e quando compartilhar dons não funcionava sorriam e batiam palma admirando um ao outro. Ainda viam as estrelas juntos e agora ouviam e dançavam com o LP do pai de Carlos escondidos.
Não namoraram, não foram amantes nem nada do tipo. Se afastaram antes que algo assim acontecesse. Não foi porque a mãe mandou ou porque eles achavam melhor, pra eles eles eram mais iguais que qualquer um, faziam parte do mesmo mundo. O que aconteceram foram os outros. Os outros diziam que um menino impecável que vestia gravata borboleta no baile, não podia passar o fim de semana rolando na grama e vendo estrelas com a menina que ainda morava no canto e vestia um vestido feito pela sua mãe.
Fugiam, ignoravam, respondiam de modo mal criado.
Até que de tanto falarem o problema entrou neles. O menino nobre foi visto beijando a menina mais formosa da festa. A menina foi barrada confundida com uma penetra, e foi pra casa derramando lágrimas enquanto seus pensamentos se envenenavam com lembranças do passado. Lembrava do primeiro dia dele indo no sítio de sapato e ela o fazendo tirar pra correrem mais rápido. Dela chamando ele de pinguim em sua festa de aniversário onde vestia um terninho quente pra dedéu que ela fez ele tirar em 5 minutos depois de chegar pra poderem aprontar com os convidados. De quando ele viajava de férias de carro. Não eram lembranças malditas nem dolorosas, mas com o véu da raiva adquiriram outro significado. De como sempre foram diferentes.
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E assim o problema chamado preconceito afastou dois companheiros. Ela fugiu dele por um tempo até que ele foi estudar na capital. Um pouco depois ela foi pra outro estado ser ao menos um por cento de tudo que havia planejado com ele. Depois de um tempo voltaram a se falar tão inexplicável como quando se conheceram. Estavam mais maduros e ainda eram os mesmos. Mais que amantes, confidentes, namorados, eram belos companheiros. Amadureceram para ver que nunca fizeram partes de mundo diferentes, foi o que ela disse quando se deitou pra rir depois de uma conversa com ele desligando o celular para pessoas de mundos realmente diferentes.

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O que me afasta é tudo que você coloca entre mim e você.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010